segunda-feira, 4 de abril de 2016

Transtorno não-verbal de aprendizagem: implicações para a educação na síndrome de Williams


A maioria das condições clinicas de origem genética, tais como a síndrome de Williams, se caracteriza por uma enorme variabilidade de manifestações. Um perfil neuropsicológico relativamente típico é frequentemente observado na síndrome de Williams. Mas nem todos os indivíduos afetados apresentam as manifestações características. A variabilidade fenotípica exige que o planejamento educacional dos indivíduos afetados seja informado por uma investigação neuropsicológica do perfil de habilidades preservadas e habilidades comprometidas.

 A inteligência é muito variável, mas a maioria dos indivíduos apresenta um quadro de deficiência mental leve. Somente cerca de 5% apresentam deficiência mental de moderada a grave. Em torno de 10% dos portadores têm inteligência normal. Uma vez que a síndrome é pouco reconhecida, o número de indivíduos afetados com inteligência normal deve ser muito maior.

É muito comum que as pessoas afetadas com melhor funcionamento intelectual apresentem um perfil neuropsicológico correspondente ao chamado transtorno não-verbal de aprendizagem (TNVA). Ao qual se acrescenta um colorido típico da síndrome de Williams. O TNVA é uma condição clinica heterogênea muito discutida, mas extremamente importante do ponto de vista educacional. O termo TNVA surgiu a partir da identificação de crianças com dificuldades de aprendizagem que apresentavam uma discrepância nos testes de inteligência, sendo o QI verbal maior do que o QI de execução. O perfil discrepante é encontrado nos indivíduos com inteligência mais alta.

O TNVA é caracterizado por um perfil de processos neuropsicológicos preservados e comprometidos. Entre as funções preservadas estão alguns aspectos da linguagem oral e escrita. Pode haver dificuldades iniciais na aquisição da linguagem oral, mas estas são geralmente compensadas e se observa um desenvolvimento bastante adequado do vocabulário, bem como ausência de maiores dificuldades fonológicas e sintáticas. Também não são observadas dificuldades nas etapas iniciais de alfabetização. A leitura de palavras isoladas, que depende de processos de correlação grafema-fonema, pode ser aprendida. Na síndrome de Williams podem ser também preservadas determinadas funções visuais de natureza analítica, tais como o reconhecimento de faces. Outro domínio no qual os indivíduos com síndrome de Williams levam vantagem diz respeito às habilidades musicais. O interesse musical é bastante desenvolvido e muitos indivíduos apresentam ouvido absoluto. Os processos neuropsicológicos mais frequentemente comprometidos são:

1)      Coordenação motora: Os portadores de síndrome de TNVA podem apresentar tanto incoordenação motora de origem cerebelar quanto alterações posturais de origem extrapiramidal.  Estas crianças são descritas como desajeitadas, têm dificuldades com a caligrafia e frequentemente recebem o diagnóstico de transtorno do desenvolvimento da coordenação motora;
2)      Habilidades visoespaciais e visoconstrutivas: Podem ser observadas dificuldades de orientação geográfica e de discriminação de relações espaciais, apreensão de configurações espaciais globais, bem como no desenho, construções bi- e tridimensionais e raciocínio mecânico;
3)      Aritmética: As dificuldades com a aprendizagem da matemática constituem uma das principais características do TNVA. A natureza das dificuldades de aprendizagem da matemática na síndrome de Williams ainda não está suficientemente esclarecida, mas há evidências de comprometimento do senso numérico e das habilidades visoespaciais;
4)      Inferências não-verbais: As pessoas com TNVA pode ser descritas como pouco intuitivas. Ou seja, têm dificuldades para aprender com a experiência, para generalizar de um contexto para outro. Principalmente quando a tarefa não é situada em um contexto verbal explícito. É como se o indivíduo necessitasse de um “manual de instruções” para decodificar as situações mais informais que não são precisamente rotuladas ou verbalmente descritas. As dificuldades inferenciais se refletem, entre outros domínios, em problemas com a interpretação de textos, a qual exige capacidade de fazer inferências e de interpretar significados não-literais, incorporando conhecimento de mundo ao contexto atual;
5)      Habilidades sócio-cognitivas: As dificuldades nos processos inferenciais não-verbais fazem que muitos indivíduos com TNVA apresentam enormes dificuldades nas interações sociais. Estas crianças podem ser descritas como socialmente desajeitadas. Algumas são tímidas, mas outras podem parecer socialmente inadequadas. As dificuldades sócio-cognitivas podem ser caracterizadas como um transtorno semântico-pragmático. Muitas vezes se observa na síndrome de Williams uma preferência por vocabulário raro, abstrato e rebuscado, sem que haja uma compreensão adequada dos termos empregados. As dificuldades pragmáticas se caracterizam por déficits na capacidade de levar em consideração as necessidades do interlocutor, havendo dificuldades para respeitar a troca de turnos e de adequar o discurso ao contexto. Na síndrome de Williams isto se manifesta frequentemente sob a forma de loquacidade e um discurso repetitivo e empobrecido de conteúdo. A hipersociabilidade que também se observa na síndrome de Williams pode decorrer das dificuldades de integrar informações não-verbais ao contexto dos relacionamentos.

O termo TNVA foi proposto pelo neuropsicólogo canadense Byron Rourke (http://www.nld-bprourke.ca) e, como foi mencionado anteriormente, sua própria existência é muito discutida. O maior problema é a heterogeneidade. O perfil tipo TNVA caracteriza diversas síndromes genéticas, podendo ser mencionadas entre as mais comuns além da síndrome de Williams, a síndrome de Turner, a síndrome do sítio frágil no cromossoma X em meninas, a síndrome velocardiofacial, a hidrocefalia congênita precocemente tratada etc. Um quadro neuropsicológico similar ao TNVA é observado também na embriopatia alcoólica. Além de as diferenças entre uma síndrome e outro serem muito grandes, a variação dentro de cada uma destas síndromes também é considerável. Qual é então a serventia do diagnóstico TNVA?

A variabilidade é uma característica fundamental dos processos biopsicossociais. Categorias diagnósticas constituem sempre esforços artificiais de ordenar fenômenos complexos com vistas a orientar o processo de tomada de decisão. A categoria TNVA pode ser compreendida como uma tentativa de encontrar um denominador comum a várias constelações sintomáticas frequentemente observadas em neuropsicologia. O mérito maior do rótulo TNVA diz respeito às suas implicações clínicas e, principalmente, educacionais.

O perfil discrepante entre habilidades comprometidas e preservadas no TNVA e na síndrome de Williams é uma causa comum de avaliações irrealistas quanto à capacidade dos indivíduos afetados. Como a linguagem é superficialmente normal, familiares e educadores podem superestimar a capacidade real do individuo. A partir de uma avaliação irrealista da inteligência podem surgir expectativas inadequadas de desempenho, acarretando estresse, frustração e sofrimento para os envolvidos. A dificuldade em estimar realisticamente o potencial do individuo pode também fazer com que pais e educadores oscilem entre expectativas demasiadamente altas ou baixas. Ambas atitudes que não favorecem o desenvolvimento da crianças. Se as expectativas excessivas causam estresse na criança e desamparo nos pais e educadoras, a falta de expectativas reduz o investimento na criança afetada.

O papel das dificuldades sócio-cognitivas costuma, por outro lado, ser negligenciado. A aprendizagem escolar, principalmente a partir de uma perspectiva construtivista, depende de modo crucial da intuição e da habilidade de interação. Como já vimos, as crianças e adolescentes com TNVA são pouco intuitivos e têm dificuldades na interação social. Estes indivíduos pouco se beneficiam de situações mais informais de aprendizagem, nas quais precisam intuir ou construir um contexto a partir da interação social com colegas. A aprendizagem dos portadores de TNVA se beneficia de contextos mais estruturados e de métodos de instrução formal e verbal explícita, que levem em consideração a natureza das dificuldades do aluno.

Os grandes objetivos da educação de pessoas portadoras de necessidades especiais são a promoção da autonomia funcional e a inclusão social. Mas os caminhos para a autonomia e a inclusão são múltiplos. Uma via importante é a experiência de normalização, de convivência e participação social em ambientes nos quais as crianças e os jovens com deficiências neuropsicológicas possam conviver com pares apresentando desenvolvimento típico. Mas só a convivência com crianças e jovens típicos não basta. Por vezes ocorre o efeito contrário. Um efeito colateral da inserção em classes e escolas regulares sem supervisão profissional adequada decorre dos déficits de habilidades sociais. Além de pouco se beneficiarem de situações informais de aprendizagem, as crianças e jovens socialmente desajeitados podem ser vítimas de rejeição e chacota, contribuindo para diminuir sua auto-estima e motivação para a aprendizagem.

A educação de pessoas portadoras de necessidades especiais requer o planejamento e implementação de um currículo individualizado, considerando o perfil de pontos fortes e pontos fracos do aprendiz. Uma investigação neuropsicológica constitui-se em uma oportunidade para traçar o perfil de funcionamento do indivíduos em diversos domínios, contribuindo para que pais e educadoras construam um perfil mais realista das potencialidades e dificuldades do indivíduo. A caracterização do indivíduo como portador de TNVA e o conhecimento das implicações educacionais desta entidade permitem a seleção de estratégias educacionais mais adequadas e eficientes.

A avaliação neuropsicológica é tão mais importante quanto maior for o nível intelectual do indivíduo. Em casos de deficiência mental moderada a grave, o perfil neuropsicológico é mais homogêneo. As discrepâncias entre os diversos domínios do funcionamento aumentam à medida que a inteligência aumenta. É nestes casos com perfil discrepante de desempenho que uma avaliação neuropsicológica se torna fundamental com o intuito de orientar o processo educacional.

O diagnóstico de portadores de síndrome de Williams com inteligência normal é um dos maiores desafios para a neuropsicologia. O reconhecimento de casos com inteligência normal é importante porque o prognóstico é melhor, mas estes indivíduos apresentam dificuldades de aprendizagem as quais precisam ser atendidas. Entre outras muitas funções, entidades como a Associação Brasileira da Síndrome de Williams desempenham um papel fundamental na divulgação de conhecimentos e incentivo à pesquisa sobre as síndromes genéticas. O aumento do reconhecimento destas entidades permite a formulação de diagnósticos mais precisos, a formulação de um plano educacional mais realista e mais eficiente, melhorando assim o prognóstico.


Vitor Geraldi Haase
Médico
Professor titular
Departamento de Psicologia, UFMG
Email: vghaase@gmail.com

Lívia de Fátima Silva Oliveira
Psicóloga
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente
Faculdade de Medicina, UFMG

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