A história do autismo
Claudia Mascarenhas-Fernandes
A criança autista indiscutivelmente interroga. Não há dúvida que, no mundo atual, pleno de “performances”
e “resultados”, que
promete o “sucesso”
e a “felicidade”, a criança portadora de
autismo
vem
apontar o furo
dessa promessa. A ideia da mudança
rápida e do descartável
é incompatível: não toleram
nem
o
imprevisto e nem mudanças, e,
se não podemos prestar
atenção aos mínimos detalhes de seus movimentos em relação ao outro, não temos chances. O fenômeno do autismo nos faz pensar, falar, escrever...
“Atualmente
é
considerado portador
de autismo
aquela criança
que
tem dificuldades
específicas
de se comunicar e de se socializar,
que apresenta interesses restritos e comportamentos estereotipados, tendo iniciado com
essas dificuldades antes dos 3 anos e fixado até idade adulta”1.
Segundo Maleval2 o termo autismo ficará marcado por sua
origem na clinica da esquizofrenia, quando foi definido por Bleuler, para falar daquelas crianças que se voltavam para elas próprias num
mundo auto-erótico,
“fica difícil até hoje

1 J. Hocchman, Histoire de l´autisme. Paris : Odile jacob, 2009. p. 27
2 J.C. Maleval
3 Idem, p.
10.
Um pouco da historia do autismo
Hocchman4 historia o autismo partindo do conceito psiquiátrico de idiota, do homem privado de razão,
isolado da sociedade com uma linguagem desprovida de significação, o
termo é precursor tanto da noção de esquizofrenia infantil
quanto do conceito
de autismo5.
Seguindo
a saga da exclusão, o
idiota foi, dentre os pacientes da
psiquiatria, dos mais negligenciados,
pelos administradores e psiquiatras que queriam o excluir de seu território. Mas o autismo, nesse aspecto difere da idiotia, pois como fenômeno, desperta entre
os profissionais uma irresistível
necessidade de
tomá-lo para si: quem
tem
a
cura,
quem
tem o melhor
tratamento,
que descobre sua
etiologia,
enfim, o
autista tem promovido
as mais
diversas disputas e contradições. Enfrentamos
no momento
atual, talvez, o ápice da diferença entre psicopatologia e organicismo e, portanto, a tendência a colocar
o autismo a
uma condição de handcap esteja forte, distanciando-o das abordagens mais psicodinâmicas.
Uma primeira versão do autismo, portanto, foi cunhada por Bleuler em 1911, que a define como uma função complexa em que a relação com a realidade é perturbada
ou suspensa, em conseqüência
de uma perturbação
primaria de associações e surgimento de emoções e imagens fugidias6. Esse retorno ao sujeito ao seu mundo
interior, essa submissão imaginária,
essa
espécie
de adesão a
uma nova realidade que
vem recobrir a realidade tomada a distancia,
representa uma segunda spaltung, onde o sujeito não é apenas dividido, mas

4 Hocchman, idem.
5 Idem, p. 31.
6 J.
Hocchman, Idem, p.
204.
A evolução do termo idiotia também derivou o termo esquizofrenia infantil. O paciente Dick, que hoje em dia poderia ser classificado como autista, segundo Klein sua
psicanalista, era portador de esquizofrenia infantil. Klein se interessa
muito pouco pela etiologia da patologia de Dick, que considerava sofrendo, não de perturbações de seu meio familiar, mas de uma incapacidade inata constitucional de suportar a angustia, e que o levou a operar uma espécie de amputação
de
seu
psiquismo habitado pela violência
e
rejeitar, para
se proteger,
todas
as tendências destrutivas.
Por
conta disso, ficar privado de qualquer atividade simbólica. O paciente foi enviado a Klein com o diagnostico
de demência
precoce, mas
o termo não era satisfatório
porque
esta era definida como secundaria a um primeiro desenvolvimento
normal. Segundo Klein, que
afirmava
ser o tratamento
da psicose infantil uma
das
principais
tarefas da psicanálise,
a esquizofrenia infantil é semelhante a do adulto, apenas com sintomatologia menos clara, mais discreta. Já Lauretta Bender se refere a uma perturbação de integração que toca o desenvolvimento de uma criança ainda inacabada: “a
esquizofrenia na infância pode se definir como uma forma de
encefalopatia que aparece em diversos momentos da curva do desenvolvimento,
interferindo no desenvolvimento da unidade biológica e da personalidade social, de modo característico
e que em relação a frustração,
envolve uma angustia à
qual o
individuo reage
com suas
próprias
capacidades”7. O problema da criança portadora da esquizofrenia é, segundo a

7 J.
Hocchman, l´hisoire de l´autisme, idem, p. 323.
de proteção contra essa
angustia. Lauretta Bender conjuga aspectos
psicopatológicos e organicistas no seu modo de ver a esquizofrenia infantil.
O autismo foi visto por Bleurer e por Lauretta Bender também como um mecanismo de defesa secundário, uma volta a si
mesmo para se proteger dos efeitos da dissociação ou da falta de integração das idéias e
sentimentos. É Kanner em 1943 que vai modificar essa concepção,
descrevendo o autismo como perturbação
inata do contato afetivo, e vai colocar a perturbação não como conseqüência, mas
como
um fracasso inicial
fundamental.
É essa
posição que vai separar definitivamente o autismo
da esquizofrenia
infantil. Então Kanner, impressionado pela distancia emocional que
essas crianças colocam entre ela e os outros, insiste em dois sintomas fundamentais: solidão e imutabilidade, assim como as
cóleras
violentas,
que
ocorrem, sobretudo, quando se tenta barrar as rotinas e as estereotipias. A
posição de Kanner é, portanto, ligada
a psicopatologia, sem ser psicanalista,
coloca a
reação de angustia da criança no centro de
suas preocupações. Diferentemente da esquizofrenia infantil, que aparece após certa latência e
se
manifesta por uma deteriorização, ou regressão, o autismo tem como sinal patognomônico a inabilidade das crianças de estabelecerem relações normais com as pessoas e a reagir normalmente desde o início da vida. E diferentemente da esquizofrenia
infantil, o autismo apesar da
dificuldade de estabelecer
relações com as pessoas, possui um grande interesse de estabelecer relações com os objetos,
muitas vezes dedicando a estes uma atenção exagerada.
Quase no mesmo momento que Kanner estabelece os parâmetros do
autismo
como perturbação inata do contato
afetivo, Hans Asperger publica sua tese intitulada “As psicopatias autísticas durante a infancia”, por conta da falta de
comunicação durante a guerra ele não teve acesso possivelmente ao artigo de Kanner, sendo o seu publicado num tratado de pedagogia, tendência de um movimento pedagógico curativo seguido pelo autor. A diferença entre os dois
textos citada
por
Arn
Van Krevelen (op.
Cit
Hocchman)8, é que
Kanner
descreve uma doença em curso, quer dizer um processo evolutivo, e Asperger se dá conta de um tipo de personalidade
que existe desde a infância e se prolonga durante a vida adulta. Asperger inova no seu estudo sobre o exercício
intelectual do autista,
difere de Kanner que acha que todos os autistas são inteligentes, Asperger aceita que pode estar ligado a um déficit intelectual, e afirma que o autismo é um estado (uma estrutura patológica da personalidade)
e não uma psicose (uma doença evolutiva). E contrariamente a Kanner não acredita
que os
autistas possuem
uma
angustia importante em seu quadro clinico. Atualmente a síndrome de Asperger é vista independente do autismo,
se manifesta mais tardiamente e tem melhor prognóstico.
Margaret Mahler por sua vez fará uma diferença entre esquizofrenia infantil e psicose infantil. Vai optar por usar o
termo psicose infantil e
assim diferenciar
definitivamente das patologias dos adultos, definindo a
criança psicótica como uma criança que se mostra intrinsecamente capaz de fazer contato afetivo com os outros. Ela acredita numa incompatibilidade
biológica entre mãe e criança de origem fetal, e
deste modo as
diferencia das crianças que possuem uma importante carência afetiva, como as crianças criadas em
campos de concentração, pois, mesmo
que tenham um retardo
de
maturação, são capazes de retirar do entorno a mínima gota de humanidade a partir da mínima

8 Idem, p.257
precoces e aparecem desde o primeiro ano de vida, essas crianças ficam perdidas, desorientadas, possuem uma ausência de antecipação postural,
ausência de sorriso, olhar vago e podem ocorrer as crises de cóleras quando perturbados pelo outro.
Essas
crises
ela interpreta
como crises
que tentam restabelecer o equilíbrio interior da criança. Depois vem as
psicoses simbióticas, onde os sintomas aparecem depois do terceiro ano de
vida, e as psicoses benignas, que são tradutoras de
sintomas neuróticos, esta ultima
categoria, depois de algumas criticas foi abandonada pela autora. Mahler faz uma comparação interessante
às crianças autistas,
diz que elas
são como mágicos que fazem desaparecer tudo que esta em sua volta. Segundo a autora
é preciso separar as duas condições (psicose autística e psicose simbiótica)
pois, isso determinará a atitude do terapeuta.
Em relação
às crianças
com
psicoses autisticas, ela
aconselha inicialmente construir uma relação, colocando ênfase em retirar a criança da
sua
concha, levando-a a perceber e a investir na relação com outro, antes mesmo de estabelecer uma relação de ajuda, ela
usa o termo
que equivaleria
ao termo
“seduzir”. Acredita
que devemos ficar moderados em relação a
apreciação dos resultados do trabalho, principalmente em relação
aos pais, para evitar dar falsas esperanças, pois
depois de uma primeira melhora da criança, pode ocorrer um recuo se a família
ou profissionais
começam
a se animar e a solicitar
muito
energicamente
a criança para que saia do seu autismo ou da sua simbiose.
Os últimos debates
Depois de trinta anos de trabalho da corrente psicodinâmica e psicopatológica,
com influencias
da
psicanálise, uma reviravolta
se processa
no
campo
da saúde
mental.
Essa
reviravolta se
denomina
um
progresso científico
e
se caracteriza
por
um retorno
ao organicismo a as teses
de degenerescência,
reformuladas na linguagem da genética moderna, e o que esse movimento tem de maior conseqüência é transpor a idéia do autismo como doença (processo
evolutivo, ligado a vários agentes patógenos, que mesmo que ainda possam
ser incuráveis, se trabalha no sentido de encontrar a sua cura), para a ideia do autismo como handcap (desviação fixa da norma, composta
de um déficit e uma incapacidade, que coloca o individuo em situação de desadaptação com o meio, necessitando uma reabilitação). Esse deslizamento de conceitos torna o autista um ser passivo, que, considerado autista um dia, sempre será autista.
Essa orientação se inicia nos anos 60 nos Estados Unidos. Em 1971 Kanner funda, a pedido de um pai de autista e editor, uma revista Journal of autism and childhood
schizofrenia,
que nesse momento
tinha colaboradores
importantes neurologistas,
psicanalistas, psiquiatras. A psicanálise e seus representantes estavam entres
seus autores. Mas
cinco
anos
mais
tarde,
sem nenhuma novidade nas descobertas sobre o autismo e quando ainda se mantinha a idéia da diversidade dos casos e conseqüentemente da necessidade da diversidade de práticas, a revista fundada por Kanner muda radicalmente, torna-se journal of autism
and developmental disorders
e Eric
Schoppler
toma
sua
direção como editor. Nesse editorial afirmam que segundo “numeráveis pesquisas” o tratamento
e
a
compreensão do autismo dependem de fatores do desenvolvimento, além de
colocarem
ênfase
no retardo mental que
seria sofrido supostamente pela maioria dos autistas
(de fato
as
pesquisas
mostravam que
apenas 10 a 20% tinham retardo mental). Seu objetivo
foi conseguido, pois o
autismo se torna rapidamente uma perturbação do desenvolvimento, e
toda perspectiva psicodinâmica desaparece sumariamente
dos editoriais. O livro
desses dois editores, Schoppler
e Rutter,
se
tornam
exemplares
do novo
pensamento
sobre
o autismo. Dois
fatores
ajudaram nessa virada do poder: a pressão dos familiares e um texto de lei promulgado. O autismo precisava de atendimento
especializado e a pressão dos pais foi decisiva, acompanhando
a
mudança
do editorial da
revista.
A
opinião das famílias foi
se tornando
cada
vez mais
uma
opinião
científica, chegando a orientar e financiar pesquisas sobre o assunto.
A psicanálise que tratou durante trinta anos
os autistas
era a única via na época que poderia salvar a criança autista de uma internação e ali os pais e crianças tinham uma escuta, porém isso poderia se reverter contra a
própria
psicanálise, dado que escutar os pais e
as crianças faria ela própria parecer perigosa
para a
paz interior
destes, remoendo os
fantasmas mais difíceis
diante de uma criança autista. Mas de todo modo o que parecia mais complexo
era admitir que não era a psicanálise que inventava esses fantasmas,
caso eles aparecessem. Para as famílias começa a ficar mais fácil tratar seus filhos como handcaps que
precisariam de uma reabilitação, do que passar todos os sortilégios de uma doença, ainda inexplicável, mesmo que tenha um
percurso evolutivo.
O que precisa ficar claro aqui, que talvez não o seja para essas famílias, é o fundamento que
está implícito: o
handcap é uma condição
imutável podendo apena ser adaptada ao meio.
Alguma teoria precisava se adequar a esse novo pensamento. O
behaviorismo seria ela: “todo comportamento, aquele do homem e aquele do rato, podem se
resumir a
uma resposta à um estimulo”, afirmava Skinner, agregando a idea de que se não temos meios científicos para trabalhar e conhecer a mente humana,
é preciso desconsiderá-la,
e de fato, acreditava
ele, isso não trará nenhum efeito negativo aos estudos científicos. Um
aprimoramento nessa idéia foi acrescido: “certas
contingências de
um ato
aumentam
a
probabilidade de ocorrer novamente e ao mesmo tempo, cria condições que podem ser sentidas,
o que achamos digno em
um
comportamento está ligado a reforços positivos”.
Como os
estados mentais
precisam
ter direito
a uma
teorização, a famosa caixa preta (a MENTE) dos behavioristas, se torna acessível aos cognitivistas.
Os behavioristas perderam terreno com isso, lhes restavam se converter em ciências aplicadas a
educação, por exemplo, no controle de comportamentos socialmente desviantes: delinquência, alcoolismo, perturbações sexuais
e toxicomanias. Eles dão a essa abordagem do behaviorismo aplicado o nome de Applied
Behavior
Analysis, ABA,
e, criam um segundo jornal Journal
of Applied Behavior Analysis.
Ferster, publica então no Journal of experimental Analysis of
behavior, o tratamento comportamental
de duas crianças autistas, uma hoje se sabe que tinha
uma síndrome
desintegrativa
secundaria a
uma encefalopatia.
É, no entanto, segundo Hocchman, curioso notar que o
autor se refere a depressão
materna aguda. E com esse texto foi demonstrada a possibilidade de
alargar a gama
de
comportamentos socialmente
adaptados
de uma
criança profundamente autista. Mas é Lovaas que se mostra mais audacioso, ele que era inicialmente
um pesquisador de laboratório, tinha o objetivo de isolar e controlar as variáveis num quadro experimental rigoroso. A hipótese de base era que numerosos comportamentos
sociais e intelectuais são regulados por
funções
adquiridas a
partir das primeiras interações com
o
meio, olhar e sorriso. A criança autista se fechava em comportamentos de automutilação e auto estimulação que paralisavam suas aprendizagens, daí a necessidade de eliminar esses comportamentos inapropriados. Trabalhará com quatro
comportamentos indesejáveis: automutilação, ecolalia, estímulos auto sensoriais estereotipados
e crises auto agressivas. Atualmente seguindo
pesquisas que permitem melhor codificar o
projeto, fragmentam em pequenas etapas a constituição do comportamento desejável e
de
eliminação do inadaptado, e os reforços dolorosos parecem ter sido abandonados.
O texto de
1987 de Lovaas
que
promoveu esperanças
no
tratamento
do autismo deu inicio a um projeto “University of California at Los Angeles (UCLA) Young Autism Project - UCLA YAP, de 1970 à 1984. Nesse estudo sete dos dezenove sujeitos do experimento foram vistos entre 1970 e 1974, e depois um estudo foi seguido de 1984 a 1985. A experiência foi publicada em
1987
e o estudo do seguimento em
1993, o que faz pensar a pesquisa como sendo mais recente
do que foi. As
crianças
estudadas tinha menos que 46 meses, passavam
pelo tratamento durante quarenta horas
semanais
durante
no mínimo dois anos.
Os resultados foram
que nove
dessas crianças não
precisaram
ir numa escola especializada. O artigo
de Victoria
Seha9, no
entanto
questiona de modo rigoroso
esse “sucesso” do método
de Lovaas,
resumo aqui algumas das principais críticas:
- Falta de randomização dos sujeitos e do grupo controle

9 Victoria SHEA, Revue commentée des articles consacrés à la méthode ABA (EIBI : Early intensive
behavioral intervention) de Lovaas, appliquée aux jeunes enfants avec autisme,
Chapel Hill, Caroline du Nord, USA – 2004.
- Os grupos experimentais não
eram representativos
da
população
de crianças com autismo
- A ausência de dados sobre correspondência entre tratamento administrado e tratamento previsto.
- Ausência de informações
sobre eventuais intervenções suplementares
administradas simultaneamente.
- Falta de claridade quanto às quantidades dos tratamentos administrados aos grupos controles.
- Avaliação dos resultados
realizada muito tempo
depois que os tratamentos foram finalizados.
- Avaliações dos resultados
não
foram
realizadas
pelos
profissionais independentes
da pesquisas.
- Avaliação dos resultados (classificações) que podem refletir mais fatores políticos ou filosóficos que as competências reais da criança.
- Erros
de
avaliação resultante
do
uso
de
diferentes ferramentas
de medida do QI e do QD para diferentes crianças.
- Uso de estatística inabitual, como a idade mental pre-calculada, e uso contestável de desvio de QI.
- A não inclusão de fatores humanos, como parentes e terapeutas, que podem ter influenciado os resultados de modo significativo.
- Falta de recuo critico das apreciações dos familiares.
É notório que o enigma da criança autista provoca dificuldades até mesmo para as ciências ditas mais científicas. A posição da psicanálise é apenas diferente, sem grau de valoração, a diferença mais impactante é que a psicanálise precisa tomar o sujeito no seu aspecto mais singular, não como uma generalização, o que vai acarretar sempre uma busca para escrever sobre o sujeito, mais especificamente, sobre aquele sujeito. E desse modo, longe de generalizar sujeitos ou sintomas, a escrita da psicanálise é uma escrita do analista.
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